Sobreviver a um furacão no Mar Mediterrâneo (sim, lá tem furacões), passar reto por diversas ilhas gregas porque o navio não conseguia ancorar e, finalmente, desembarcar na Grécia em meio a uma greve geral de 48 horas foi uma experiência bem intensa para quem fazia a sua primeira viagem de navio.
Contudo, o que me impressionou não foi o comandante passar de mesa em mesa no café da manhã para explicar aos passageiros o motivo de camas deslizarem, cadeiras das varandas voarem e meio navio vomitar durante a madrugada. Foi o senhor que apreciava calmamente o seu café, conversando com os amigos, enquanto o centro de Atenas pegava fogo após uma manifestação violenta embebida por coquetéis molotovs.
Quando isso aconteceu? Outro dia, em 2011. A Grécia estava prestes a anunciar um calote e, na capital, cidadãos levavam pedras para protestar em frente à sede do governo – alguns deles, sim, coquetel molotov (bomba caseira feita com garrafa, pano e algum combustível). Assim que cheguei, antes dos hotéis serem cercados para a proteção dos turistas, tentei entender o que acontecia nos arredores do Athenaeum InterContinental, onde eu estava.
O clima era tenso e, por causa da greve geral, montanhas de lixo se acumularam, adornando a cidade de uma forma peculiar. As ruas, desertas, intimidavam. As casas passavam longe do que eu imaginava. Sem dinheiro, ninguém fazia reforma. As fachadas estavam sujas e muitos imóveis, vazios. Os prédios de baixa estatura, muito comuns na cidade, pareciam conjuntos habitacionais populares construídos na década de 1970 e largados ao tempo.
De volta ao hotel, já não era mais possível sair outra vez. A polícia militar cercou tudo. Por dez minutos, a janela do quarto serviu de entretenimento. Deu para ver as ruas em chamas, lamentando pelo país e pelo passeio perdido. Assim, para o resto das 23 horas e 50 minutos, só restavam o bar e o restaurante do hotel para meu pai, minha mãe e eu acharmos alguma coisa para fazer. Alguém tem dúvida que na falta de baralho a nossa diversão foi beber e comer?
Para o nosso deleite, o restaurante servia especialidades gregas e fugia daquele tema “cozinha internacional”, que ninguém quer passar perto quando o objetivo é conhecer os hábitos locais. Então, mergulhamos em azeites, azeitonas, iogurtes, coalhadas, queijo feta e pasta de berinjela. Aliás, o deus do azeite deve ser grego. De tão incrível, tudo o que aparecia pela frente, a gente regava com azeite.
No dia seguinte, Atenas amanheceu mais calma. E nós, com alguns quilos a mais, decidimos gastar tudo caminhando. Todos os monumentos estavam fechados por causa da greve geral, mas ainda assim deu para ver algumas coisas pelas cercas, como o Templo de Poseidon, no Cabo Súnion, um pouco afastado da capital.
Longe dos protestos, o lugar é um dos poucos no país que ainda guarda a magia do que a Grécia já foi um dia. Segundo a lenda, o cabo Súnion foi o lugar onde Egeu teria se lançado ao mar, por achar que seu filho Teseu estava morto (Teseu combinou com o pai que se saísse vitorioso do seu combate contra o Minotauro, içaria velas brancas no seu barco, ao passo que, se morresse, a tripulação deveria deixar no barco as velas negras no mastro. Egeu se esqueceu de içar as velas brancas. O pai pulou no mar que acabou ganhando o seu nome).
No ponto mais alto do cabo Súnion foi erguido um templo em homenagem ao deus Poseidon, para proteger as águas gregas. Aliás, para o grego antigo, Poseidon era muito mais importante do que Atena, a deusa da guerra. Afinal, foi por causa do mar que a Grécia virou uma potência.
Mas a Grécia não tem mais o poder sobre os mares, nem os olhos de Atena. Hoje, entre os pedaços do Parthenon (construção de símbolo de poder) e o Templo de Zeus Olímpico, bem no centro da capital, passam pessoas que tomavam café enquanto a Grécia caminhava lentamente para o buraco. Já em 2001, falava-se sobre esta quebra econômica. Porém, os rostos só foram pintados de branco, em protesto, em meados de outubro de 2011, quando já não havia mais o que fazer.
Foi somente no fim da viagem que entendi a aparente serenidade daquele senhor, resumida por um brasileiro que mora há anos na Grécia e que conseguiu explicar em português o espírito daquele país. Para o grego, tudo pode ser resolvido, mas não precisa ser agora. Especialmente, para não ter de renunciar àquela uma hora de pausa para o cafezinho. Esse momento de bate-papo entre goladas da bebida estimulantes é mais sagrado para o grego do que qualquer templo e mais importante do que qualquer assunto político-econômico. Claro, presumo eu, desde que ele tenha dinheiro para pagar a bebida. Será que um dia vão perceber isso?
*Esse texto foi publicado originalmente em 2012






