Cara a cara com Fernando Collor

Todo brasileiro deveria conhecer a Praça dos Três Poderes por dentro. Ou melhor, os três poderes da praça. Não apenas para tirar selfies com a imponente fachada ao fundo. Muito menos em prol de degradações antidemocráticas. Só se entende Brasília, vivenciando Brasília. Minha primeira visita por lá foi a trabalho, com credencial de jornalista. Um daqueles momentos para colocar na coleção “jamais esquecerei”. O ano era 2007 e jamais, repito, jamais imaginaríamos o que aconteceu em 2023.

Importante dizer que se tratava de uma quinta-feira, ou seja, quase não havia políticos nos prédios públicos, pois, teoricamente, é o dia de voltarem aos seus respectivos Estados para dar continuidade aos trabalhos localmente (ainda mais em 2007 onde jamais, repito, jamais imaginaríamos o home office e reuniões virtuais).

O que sobrava diante dos olhos da jovem jornalista era um ou outro parlamentar a discursar para uma plateia praticamente vazia. Senador de Alagoas, o ex-presidente Fernando Collor de Mello era um desses poucos. Falava, falava e falava. Hipnotizou-me pelas braçadas no ar e a veia saltada no rosto. Qual era o discurso mesmo?

Naquele momento, o significado das palavras esbravejantes não importava. Tentava resgatar a minha memória política mais antiga. Quando nasci, ainda estávamos sob regime militar, mas a primeira lembrança mesmo já era da recente democracia: a do então presidente Sarney, falando com os “brasileiros e brasileiras” ao interromper a programação na televisão.

Era só ver aquele senhor de bigode, que já arrumava a postura para entender bem o que ele dizia, afinal, como uma pequena brasileira, sabia que o negócio também era comigo. Sou da época da hiperinflação. Lembro-me de, no supermercado, perguntar para a minha mãe o porquê de o moço colar etiqueta de preço em cima da que já estava lá. Também via graça nas senhorinhas que fiscalizavam as etiquetas em nome do senhor de bigode.     

Corta cena. Entra a imagem de Collor fazendo sua corridinha matinal com uma mensagem ecológica estampada na camiseta. Corta cena novamente, entram os “caras pintadas” pedindo impeachment nas ruas (sem destruir patrimônio público) e, na sequência, a renúncia de Collor à presidência. Era 1992, eu tinha 9 anos de idade.

Observar Collor sob a cúpula convexa do Senado Federal mexeu com meus pensamentos. Onde estariam os “caras pintadas”? Onde estariam os seus filhos? Provavelmente, como eu naquele dia, trabalhando e pagando impostos, enquanto personagens assim discursavam.   

Ainda atordoada, fui visitar os gabinetes que “recheiam” as duas enormes torres do conjunto arquitetônico concebido por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Estavam comigo uma grande amiga, também jovem repórter, e um jornalista político das antigas, que na época ainda trabalhava na rádio Eldorado.

Ele teve a paciência de nos apresentar um deputado estadual, que nos convidou a conhecer o seu gabinete. Diga-se de passagem, uma sala pequena extremamente simples. Saímos com uma cópia da Constituição nas mãos que, para a nossa decepção, tinha a folha de rosto rasurada por um carimbo com o nome do tal deputado e o contato do gabinete.

Já recuperada do discurso do Collor e da violação física do meu exemplar da Constituição, comecei a reparar no interior de um ou outro gabinete com a porta entreaberta. Uns tão simples quanto aquele que eu acabara de sair, outros tão exuberantes quanto a casa de Laurinha Figueroa (vilã da “novela das oito” Rainha da Sucata, de 1990).

Meu levantamento sobre ostentação e modéstia só foi interrompido pelo aumento do fluxo de pessoas nos corredores conforme nos aproximávamos dos elevadores. Senti-me em um formigueiro habitado por diferentes espécies de formiga. Cada causa formava uma tribo. Cada tribo vestia um símbolo que representava a sua causa. E os parlamentares? Bom, era quinta-feira, não tinha quórum suficiente para entender como cada banda tocava.

Foi por causa dessa passagem pelo Distrito Federal que a expressão “máquina do governo” passou a realmente fazer sentido para mim, do literal ao figurado. Mais ainda a importância de uma Constituição democrática, sem carimbos.

Ao distanciar-me daquela praça, mas ainda vigiada pelos três poderes, precisei inspirar profundamente o ar seco do Cerrado. Olhei para o céu azul anil e, na tentativa de me recompor, abstraí as ruas sem esquinas. Uma cidade ilusória, apesar de tanto concreto.

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