Meu pai sempre se lembra de um amigo que definia as boas noites boêmias como aquelas que tinham no ar um cheiro de madeira queimando. Quem gosta de caminhar na penumbra das ruas ou ficar sentado em cadeiras de botequins sobre a calçada, provavelmente, já sentiu aquele aroma amadeirado que inunda o espírito. Em Wuhu, uma cidade industrial na China na província de Anhui (a uns 300 quilômetros de Xangai), tive uma noite dessas.
Antes de adentrar na tal noite, preciso fazer um prefácio sobre o dia. Sob o sol, a periferia de Wuhu revela-se entre ruelas sujas, casas bem humildes e carrinhos tipo os de pipoqueiro no Brasil mas que, ao invés de pipoca, exibiam pedaços de frango pendurados à espera do mergulho no óleo quente. Nas calçadas, mulheres sentadas arrancavam cabeça e rabo de pitus vivos para serem empanados e fritos mais tarde.
Feita a introdução, agora, parto para a noite, com o velho clichê de que nela todos os gatos são pardos. Realmente, em Wuhu tudo se transforma. Éramos dez brasileiros a caminho da já tradicional “foot massage”, a nossa “balada” de todas as noites e um dos imperdíveis hábitos chineses — resumindo, a graça é receber massagens nos pés e beber chá de crisântemo. Só que o percurso a pé até a casa de massagem, que levava uns 15 minutos, fazia toda a diferença.
Naquela noite quente de primavera o ar amadeirado tomou conta. Ao contrário das outras, mais frias, as ruas estavam cheias e alegres com a onda de calor. Era a nossa última noite em Wuhu, o que deixava tudo ainda mais especial.
Na primeira parte da via principal do bairro onde estávamos, barraquinhas vendiam tênis, botas, roupas, CDs, DVDs, brinquedos e tudo quanto é cacareco que possa imaginar. Aquele simples camelódromo sob a lua, com lampadinhas penduradas de modo improvisado para iluminar a mercadoria, impressionava até frequentadores das feirinhas da madrugada no paulistano Glicério.
Do outro lado da rua, os donos das barracas de comida olhavam admirados nossos rostos ocidentais e apontavam para a gente como aberrações de circo. Mais à frente, a coleções de botecos, um ao lado do outro com direito a cadeiras na calçada, reunia um pessoal jovem, que ria alto e falava mais alto ainda enquanto saboreavam pitus fritos e goladas de cerveja local.
Nós, “os estranhos ocidentais”, comprávamos tênis, falávamos alto, cantávamos alto, ríamos mais alto ainda e ignorávamos os pitus, considerando ter visto pela manhã o arrancar de rabos e cabeças. Sem medo de assalto ou de que o tempo passasse, durante aquela caminhada, vivemos Wuhu com toda a liberdade que um turista pode ter na China. Especialmente pela restrição da internet: em certos momentos, não poder acessar o mundo virtual é uma bênção. É estar realmente presente naquele momento.
Enquanto minha mente registrava cada frame daquela noite, notei de longe a prostituta à procura ou à espera de um cliente. Com a porta de seu quarto que, escancarada, beijava a rua, ela, à beira da cama, observava nossas risadas nada discretas. Deu uma última espiada, esticou o braço e bateu a porta. Logo em seguida, chegamos à casa de massagem, que despertou de seu silêncio para receber o nosso barulho e o cheiro de madeira queimada, afastando a fumaça de fritura que tingia o ar.
*Texto publicado originalmente em 2013








