(China) Três varetas de incenso no Templo da Alma Escondida

Nagib Mahfuz já dizia, “It’s a most distressing affliction to have a sentimental heart and a skeptical mind”. E com o espírito dessa frase passando pelos pulmões, atravessei a cortina de fumaça de incensos com calma respiração em um dos templos budistas mais bonitos do mundo, o Lingyin ou “Templo da Alma Escondida”. Naquela tarde em Hangzhou, embora tenha tomado um sorvete Häagen-Dazs falsificado (não tenho provas, mas meu paladar aguçado suspeita que sim), tive uma vivência espiritual bem interessante.

Estava em Lingyin, um templo budista cuja primeira construção data de 326 D.C., mas que já foi destruído e reconstruído umas 16 vezes, enfrentando várias guerras. De impressionante perfeição arquitetônica, este complexo sagrado possui diversos “cantinhos” especiais, entre eles, grutas decoradas com um total de 470 esculturas budistas, todas entalhadas diretamente na rocha. A luz do sol que invade esses refúgios também é especial. Ela procura cada detalhe escondido pelas árvores de folhas bem verdes. Esse jogo de luz e cores encanta o espírito e ajuda a mente a entrar em um estado meditativo ou de contemplação.   

A minha caminhada por Lingyin foi acelerada pelo tempo curto — passar uma tarde é pouco para o local que enche os olhos de qualquer pessoa, inclusive ateus. Logo chegamos a uma espécie de “praça central”, que ligava os dois prédios principais de meditação e cerimônia. Ao centro, tochas para acender os incensos e o grande recipiente para jogá-los.

Aquele era um ponto de encontro de pensamentos, entre pedidos, agradecimentos, súplicas por esmolas (não eram poucas as pessoas com deformidade no corpo que esticavam a mão por moedas), e despretensões, no caso, de muitos turistas. Foi nessa “praça” agregadora de mundos onde fui surpreendida ao me ver em meio a um solitário ritual budista.

Havia ganhado três varetinhas de incenso na entrada do complexo religioso. Pela tradição, qualquer ritual que você fizer com este símbolo tem de ser em múltiplos de três. Há quem leve um ramalhete de incensos, mas me contentei com essas três que me foram dadas de presente, afinal, pela curiosidade, foram elas que me levaram até aquela parte do templo.

Só tinha um detalhe, não tinha a menor ideia de como fazer o tal do ritual com os incensos. Sem internet para me ajudar, parti para técnica milenar (e offline) da observação. Passei uns 15 minutos decorando mentalmente cada detalhe do ritual que os outros faziam. Aí sim comecei o meu. Com profundo respeito, porém cética. Assim que encostei meu incenso no fogo, os melhores pensamentos do mundo invadiram a minha mente. Veio, assim, a paz do silêncio interior, algo tão mágico quanto aquela fumaça.

Passado o estado meditativo, ainda com as varetinhas acesas, juntei as mãos e fiz uma reverência na direção dos quatro principais pontos cardeais, sempre inclinando bem o corpo e erguendo os braços em direção à testa. Ato de profundo agradecimento por aquele momento. Feito isso, coloquei o incenso em uma bela estrutura montada para que as varetas pudessem repousar até o pó prensado de ervas aromáticas ser totalmente queimado.

Não sei mesmo explicar o que aconteceu naquele templo, mas em um dia desses, lendo Carlos Drummond de Andrade, voltou-me à mente o que senti naquele instante em que só existia o meu templo interior. As palavras de Drummond mesclaram-se com as de Mahfuz. Sem dúvida, é mais angustiante ter um coração sentimental e uma mente cética, porém o sofrimento é opcional:

A cada dia que vivo,
mais me convenço de que
o desperdício da vida
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca
e que, esquivando-nos do sofrimento,
perdemos também a felicidade
A dor é inevitável
o sofrimento é opcional

Carlos Drummond de Andrade

*Texto publicado originalmente em 2013

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