(Argentina) Lágrimas em chamas

Do dia 30 para 31 de dezembro de 2004 a Argentina teve uma madrugada trágica. Em uma das maiores catástrofes do país, 619 feridos e 194 mortos foi o saldo de vítimas de um incêndio em uma balada em Buenos Aires. Eu estava no país quando tudo aconteceu, mas em Bariloche. Passei lá a virada. Após um jantar no hotel, fui a uma balada, obviamente, como qualquer jovem de 21 anos.

Poderia ter sido em Bariloche e na madrugada seguinte. Porém, não foi. Enquanto via os argentinos dançarem felizes a chegada de 2005, pensei naquelas pessoas que só queriam se despedir do ano, na última balada de 2004.

Um pouco antes da meia-noite, ainda no dia 30, o fogo começou na boate República Cromañón, localizada no bairro Once, no centro da cidade. O incêndio foi provocado por rojões, que atingiram o telhado da casa.

O maior problema é que o local tinha saídas de emergência contra incêndio, mas elas estavam trancadas, tanto é que os bombeiros tiveram de arrombá-las pra fazer o resgate. Por que trancadas? Para evitar que pessoas entrassem sem pagar. E, assim, tantos se despediram não só do ano.

O assunto repercutiu em todo o mundo. Cheguei à cidade dois dias depois e deparei-me com algo que é muito difícil observar no nosso “pacífico” Brasil. Recebi de uma pessoa que passava pela rua um folheto de convocação para uma passeata. Era para empunhar velas em protesto contra a balada que deixou as saídas de emergências trancadas e exigir do governo maior rigor na fiscalização das casas noturnas.

Nesta época, a Argentina estava mergulhada em uma das tantas crises econômicas que já afundou. Então, a manifestação não deixou de ter o seu caráter político, embora o pedido no convite fosse claro: “não levar bandeiras de partidos políticos”.

Ao ver aquelas pessoas saindo às ruas, percebi que para toda a cretinice humana existe um antídoto. Em Buenos Aires, as lágrimas escorriam, mas em chamas. De solidariedade, de amor, de saudade e de certeza de que o apelo ajudaria de alguma forma a tornar as coisas melhores.

Guardei o convite à manifestação como um tratado de atitude. Está até hoje na minha gaveta. E, quando reviro minhas lembranças de viagem, lá está ele, recordando-me da chegada de 2005. Ano quando resolvi mobilizar a minha vida. Afinal, eu estava em uma balada em Bariloche, não em Buenos Aires. Eu tinha essa chance.

Cheguei ao Brasil, terminei um longo namoro, já sem sentido, reatei amizades, fiz outras, formei-me jornalista, arrumei o emprego que traçou o caminho da minha carreira. Passei a viver com outro olhar. A partir dessa virada, todos os meus anos foram, na realidade, desdobramentos de 2005.

Agora, contando as horas para 2013, o que desejo para todos é paz. Nada mais do que leveza e liberdade de espírito ao sabor de um bom doce de leite argentino, que, desculpem-me os mineiros, é inesquecivelmente incrível.

“No olvidar, siempre resistir, por los sueños que se hundieron allá”. Feliz Ano Novo!

*Texto publicado originalmente em 2012

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